Entre a amizade e o desejo:
Fazes-Me Falta, de Inês Pedrosa
Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira
Sem desejo, não há nada (Inês
Pedrosa).
O desejável é o fim imóvel, perfeição,
identidade consigo mesmo (Marilena Chauí).
Utilizando uma técnica narrativa
simples em que apenas duas vozes se entrecruzam, representando também o olhar
de duas gerações, constrói-se o romance Fazes-me
falta (2006), de Inês Pedrosa. Representa a trajetória de uma amizade
profunda que está no limiar da paixão. A estância narrativa é construída por
cinquenta textos em que falam as duas vozes em questão, num diálogo espectral,
visto que a voz que o inicia é a de uma mulher que acaba de morrer. Essa mulher
não só toma a iniciativa do diálogo como também escolhe os temas sobre os quais
falarão ao longo de toda a narrativa. A outra voz é a de um homem mais velho e
que se sente viúvo, embora nunca tivessem firmado um compromisso amoroso.
Segundo Françoise Dastur, "(...) os homens das sociedades arcaicas repugnavam
a ideia de uma destruição definitiva e total e consideravam que os mortos
continuavam a levar ao nosso lado uma vida invisível e não cessam de intervir
no curso da existência daqueles que chamam a si mesmos de vivos" (DASTUR,
2002, p. 17).
É a própria autora quem explica o
porquê de a iniciativa do diálogo pertencer à mulher, o motivo pelo qual ela é
quem decide sobre que temas vão dialogar: "(...) a voz masculina que se
contrapõe a ela é a de um homem ainda formado pela cartilha do macho guerreiro
português, cuja regra número um é a camuflagem dos afetos" (ARAÚJO, 2007,
p. 17). O diálogo é iniciado por uma mulher morta que vê o seu
"amigo" de onde está (apenas ela pode vê-lo, o inverso não acontece).
Mas é como se ele pudesse sentir a presença dela, por isso, prossegue com o
diálogo. Esse tipo de narrativa, a nosso ver, aproxima-se do maravilhoso,
conceito cunhado por Todorov: "[O] 'maravilhoso puro' (...) não tem
limites claros (...) os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular
nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os
acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza
desses acontecimentos" (TODOROV, 2004, p. 59-60).
Desse modo, a escritura de Inês
Pedrosa nos conduz ao sobrenatural _ a morta que tem saudades do
"amigo", que sente em sua mão as unhas dele, que sente desejo:
"as tuas unhas arranhando a pele da minha mão, pensas que não as senti? (...)
como pode um corpo morto sentir o que quer que seja? (...) Precisei de morrer
para te desejar” (p. 127). De um "lugar sem lugar", "limbo"
ou "noante" , é que ela inicia o diálogo. A personagem assume a sua
condição de morta precoce e que deseja ainda despedir-se do mundo que deixou e
do homem a quem chama "meu amigo", mas por quem nutre um sentimento
que se mostra como algo mais pungente que a amizade. Para realizar o seu
desejo, faz um pedido a Deus: que ela esteja mais um pouco com aquela pessoa
que é tão cara para ela.
"Agora que saí do corpo que
fui - para me tornar pólen, poeira nos teus olhos, pura imaginação de mim -
imagino-o melhor ainda, ébrio de luz, (...) Despojada de corpo é-me mais fácil
transformar-me no próprio balouço, na luz dançante de que ele é feito. (...)
peço-Lhe que me deixe matar saudades desse mundo que deixei tão de repente"
(p. 10).
Ele, ao contrário dela, não crê
na transcendência, sendo esse um dos pontos de discordâncias entre ambos, por
isso lança um apelo de um descrente a um Deus que, no seu entender, não queria
ouvi-lo: "Deus omnipotente em que não creio, acorda do Teu sono eterno e
vai dizer à minha amiga o obrigado que eu não soube sussurrar-lhe ao ouvido.
Não te faças de surdo, Deus cruel e ocioso" (p. 31). No decorrer da
narrativa, surgem as razões pelas quais os dois se afastaram antes da morte
dela. Inicialmente optam por serem apenas amigos, pois ambos já viveram vários
desencontros amorosos, várias frustrações no campo das paixões. Entretanto, ao
tentar evitar o amor e alicerçarem a opção que fizeram de se unirem apenas por
laços de amizade, não conseguem segurar as rédeas do desejo e embora não tenham
vivido uma relação mais íntima, confessam um ao outro sua paixão (iminente)
após a morte dela. Zigmunt Bauman, em Amor líquido (2004), assevera que o amor,
assim como as relações políticas, sociais e culturais nos tempos atuais, é
vivenciado de forma instável, insegura. As relações nunca estiveram tão
frágeis, sempre na iminência da ruptura, embora haja liberdade como jamais
houve antes na escolha dos parceiros e nas variadas modalidades de relações
amorosas. O mundo instantâneo, em que tudo se torna efêmero, há que se preparar
sempre para viver um novo relacionamento, pois estamos propensos às relações
descartáveis, assim como agimos com os objetos que utilizamos no nosso
cotidiano. No entanto, não obstante a efemeridade das relações, há sempre o
receio da perda do ser amado, pois "separar-se do ser amado é o maior medo
do amante, e muitos fariam qualquer coisa para se livrarem de uma vez por todas
do espectro da despedida" (p. 32-33). A personagem, por sua vez, tenta se
justificar, ao afirmar que poderia tratar os sentimentos de forma totalmente
racional e equilibrada.
"Arrumei os amores, é a
primeira regra da vida - saber arquivá-los, entendê-los, contá-los,
esquecê-los. Mas ninguém nos diz como se sobrevive ao murchar de um sentimento
que não murcha. (...). Não há explicações para o desaparecimento do desejo,
última e única lição do mais extraordinário amor (...). Como é que, de um dia
para o outro, a sua voz deixou de me procurar e eu deixei que a minha vida
dispensasse o espelho da tua?" (p. 168).
(Fala do personagem)
"Organizei minha existência por iluminações. Desta forma, todo o amor e
todas as vitórias me eram permitidas: já estava morto. Estrangulava as paixões
no berço, o que tem a vantagem de as tornar estéreis" (p. 49).
É a própria autora quem fala a
respeito desse relacionamento, numa entrevista em que diz que gostaria de
derrubar a ideia de que quando um homem e uma mulher se admiram mutuamente, tem
que haver obrigatoriamente, a relação sexual. Em uma das falas do personagem,
ele afirma o quanto desejava amá-la. Era o amor "racionado" que
esperava para se manifestar, mas que não teve tempo para isso, pois foi
surpreendido com a morte dela. "(...) eu queria agora dar-te o amor total
e infantil que tinha para te dar. Racionei-o a vida inteira como a porra do
chocolate de leite _ por que vivemos como se o tempo nos pertencesse
infinitamente, como se pudéssemos repetir tudo de novo, como se pudéssemos
alguma coisa?" (p. 31).
A fala do personagem também
evidencia a questão do desejo que está presente do princípio ao fim da
narrativa. É um desejo que, contido, manifesta-se apenas de modo contundente,
após a morte da mulher. Sobre a complexidade dos desejos e dos sentimentos,
afirma Adauto Novaes:
"Acontece com os afetos e
desejos o mesmo que acontece com a liberdade: uma prodigiosa desatenção, (...)
um estado de perturbação provocado pela imaginação delirante. Apesar disso uma
força estranha conduz o espírito a desafiar o obscuro, o dissimulado, o ausente"
(NOVAES, 2002, p. 11).
Ainda sobre o desejo, sua relação
com a memória e com o objeto de desejo ausente, assevera Marilena Chauí:
"(...) o desejo não se
confunde com a necessidade ou com o apetite vital, sempre dirigidos a algo
presente, destinados a ser suprimidos pelo consumo imediato do que lhes traz
satisfação. A relação com a memória é a relação com o tempo e o desejo se
constitui como temporalidade, aptidão do sujeito para protelar indefinidamente
a satisfação, desligando-se do dado presente, encontrando mediações que o
remetem ao ausente (...)” (CHAUÍ, 2002, p. 25).
Do "lugar", "não
lugar" ou "noante" onde está vê o seu amigo ou amado, vê o
quanto ela era importante para ele. Sente a morte como um "presente
obrigatório", de onde pode fazer uma retrospectiva de sua vida, que se
inicia antes mesmo de sua concepção. A amizade parece ser uma espécie de defesa
diante da possibilidade do amor. "Tomei a amizade como uma versão adulta
do amor, o que significa que transferi para a casa dela a artilharia pesada do
meu batalhão de afetos. Substituí o Príncipe Encantado pelo Amigo Maravilhoso.
(...) Nada poderia nos separar, porque estávamos naturalmente livres das
armadilhas do desejo, da via sacra da posse e do sacrifício" (p. 39).
A personagem morta fala da
finitude, maior temor de todos, de como ela, no seu "estado", pode
ver a maneira como as pessoas a olham, prenunciando assim, seu próprio futuro.
Nas palavras de Schopenhauer:
"A morte é a grande correção
infligida pelo curso da natureza à vontade da vida e ao egoísmo que é o
elemento essencial a ela: pode ser concebida como uma punição para nossa
existência. É a ruptura dolorosa do nó que a procriação atou como volúpia, é a
destruição violenta, proveniente de uma força externa, do erro fundamental de
nosso ser: é a grande desilusão. Somos, no fundo, alguma coisa que não devia
ser, por isso deixamos de existir. O egoísmo consiste, na verdade, no fato de o
homem limitar toda a realidade à própria pessoa (...). A morte o faz conhecer o
engano, ao suprimir essa pessoa: agora a essência do homem, que é a sua
vontade, viverá daqui para frente apenas nos outros indivíduos (...)"
(SCHOPENHAUER, 2004, p. 72-73).
Durante a narrativa, percebe-se
que uma das razões mais relevantes para que o casal se separe e só se
reencontre após a morte da personagem: a opção política dela. A personagem
preocupava-se com os destinos políticos do seu país _ cita a Revolução dos Cravos
- com o sofrimento das meninas de alguns países da África, com as agruras por
que passavam os mais pobres e sem defesa. Ele, com perfil que, aparentemente,
se aproxima mais do liberalismo, ela, com uma postura próxima do socialismo.
"Deus é misericordioso; põe-me diante de ti, em vez de me despachar a alma
para um desses países onde as mães mutilam as próprias filhas, cortando-lhes o
próprio sexo à faca e cosendo-as com espinhos. Ouço continuamente o grito
dessas meninas _ acordei com eles a vida inteira. Abria os olhos escutando
concretamente esses gritos vindos da Somália ou do Sudão, esses gritos que
podiam ser meus”.
“Julgava possuir todas as chaves
do sofrimento. Chamavas-me presunçosa, talvez tivesses razão. Não há
entendimento para o sofrimento do outro _ só essa distância paternalista a que,
nos casos felizes, se chama compaixão. E isso pode bastar como método de
guerrilha, mas não como teoria de superação. (...) defendias com ferocidade o
liberalismo, dizias-te roubado quando ouvias falar em projectos de integração
de marginais" (p. 39;60).
(Fala do "amigo")
"Não querias saber _ preferiste sempre ver os bombeiros que salvam, os
Mandelas que resistem, os jovens capitães que nos entregam a liberdade de cravo
na mão e voltam para casa" (p. 43).
Durante toda a narrativa, o
personagem sente-se culpado por não ter feito algo para evitar a morte precoce
da "amiga". Em alguns momentos, chama-a de Sininho _ a fada da
história de Peter Pan, personagens que moram na Terra do Nunca, onde vivem
apenas crianças que nunca crescem e, portanto, nunca morrem. "Como a fada
de Peter Pan, refilavas muito e espalhavas pó de ouro em tudo o que tocavas"
(p. 80).
No desfecho da história, a
personagem morta vê uma jovem que corre o risco de ser atropelada numa estrada
e apela para o seu "amigo" que a salve, que não a deixe morrer
precocemente e o convida para ir aonde ela está. Ele, por sua vez, enxerga a
jovem e vê nela a sua "amiga", empurra-a para a calçada e deixa-se
morrer para que aconteça o "encontro definitivo" entre os dois. (Fala
da personagem) "Depressa. A rapariga deixa os livros cair na estrada e o
autocarro não terá tempo de travar antes que ela a apanhe. (...) Desta vez,
podes salvar alguém.(...) Vem, não tenhas medo, lança-te sobre essa ,menina que
te sorri como eu e salva-a. Estou à tua espera num sítio onde as palavras já
não magoam, não ferem, não sobram nem faltam. Esse sítio existe." (p. 235)
(Fala do personagem) "Os teus livros desmoronam-se no meio da estrada
(...) Ajoelhada no meio da estrada sacodes tranquilamente cada livro. (...)
Voas atrás delas sem perderes o sorriso. (...) Mas sou eu quem de repente corre
em sonho de voo. Empurro-te para o passeio, o teu corpo ágil salta para a vida
no último instante, ouço ainda os trovões desesperados do autocarro. Entras por
dentro da minha carne, (...) rebentas-me com os vidros. E vejo-te lá em baixo,
correndo agora através do jardim (...) Mas já não me lembro como era, fica longe,
longe, cada vez mais longe" (p. 236).
Fazes-me falta é um romance que
traz à tona a imensa angústia vivida pelo ser humano moderno: a solidão, o
receio de envolvimento com o outro, o medo da perda que se apresenta como uma
ameaça constante nos tempos atuais. Num mundo identificado por Bauman como
líquido, em que há uma enorme fluidez nos laços humanos, que, por isso mesmo,
tornam-se extremamente frágeis, o amor e a amizade são vivenciados de modo
inseguro. Buscam-se parceiros(as) cada vez mais ideais, porém parece impossível
encontrá-los(as). Tudo é efêmero, descartável, volátil. Há sempre o desejo de
começar novos relacionamentos, sem excluir a possibilidade de que surjam
outros. Ainda segundo o autor polonês, o homem moderno não deseja apaixonar-se
verdadeiramente para que se abra um espaço para novas aventuras, novas
experiências, numa busca insaciável pela felicidade, que se apresenta como algo
inalcançável. Como consequência de tudo isso, o ser humano está cada vez mais
solitário.
Com uma linguagem romanesca
simples e com toques poéticos, a obra de Inês Pedrosa representa com grande sensibilidade
e delicadeza questões extremamente pertinentes da vida do ser humano: as
relações afetivas e a dor da perda definitiva; trazendo assim, para o universo
literário, temas tão caros ao ser humano nos tempos atuais.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Luciana. Sem desejo, não há nada. Entrevista com
Inês Pedrosa. Entrelivros, Ano 2, abril de 2007, nº 24.
BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido - Sobre a fragilidade dos laços
humanos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004.
CÍRCULO DOS LEITORES. À beira da
escrita, um anjo. Entrevista com Inês Pedrosa. Disponível em: <http://www.circuloleitores.pt/cl/artigofree.asp?cod_artigo=85910>.
Acesso em: 30 dezembro 2008.
CHAUÍ, Marilena. Laços do desejo.
In: NOVAES, Adauto. O desejo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
DASTUR, Françoise. A morte - Ensaio sobre a finitude. Tradução
Maria Tereza Pontes. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
NOVAES, Adauto. O fogo escondido.
In: NOVAES, Adauto. O desejo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
PEDROSA, Inês. Fazes-me falta. São Paulo: Planeta,
2006.
SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte metafísica do amor _ Do sofrimento
do mundo. Tradução: Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2004.
Fonte:
http://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/339-entre-a-amizade-e-o-desejo-fazes-me-falta-de-in%C3%AAs-pedrosa
Acesso em: 06 de setembro de 2013.