Tempo – Espaço – Memória
FAZES-ME FALTA, DE INÊS PEDROSA: UMA ALEGORIA
CONTEMPORÂNEA DA “SAUDADE”
Trechos da Dissertação de Angela Maria Rodrigues Laguardia
Belo Horizonte, 2007
FAZES-ME FALTA, DE INÊS PEDROSA: UMA ALEGORIA
CONTEMPORÂNEA DA “SAUDADE”
Trechos da Dissertação de Angela Maria Rodrigues Laguardia
Belo Horizonte, 2007
A partir da suposta sistematização da
literatura, referida como pertencente à “Geração de 90” , percebemos que as
inovações ou diversificações que elas propõem, seja pelo tempo recente, seja
pela confluência de tendências simultâneas, pelo momento em que a própria
história do romance português é questionado ou mesmo pela própria ruptura com a
tradição literária, não existe ainda um traçado firme, se é que podemos dizer
isto em relação ao horizonte literário português:
(...)
o leitor não encontrará aqui o modelo linear de descrição temporal, como não
encontrará uma evolução dialéctica de luta entre motivações individuais; mas
encontrará aqui, ao modo de um caleidoscópio, fragmentos, aspectos, partes,
visões parcelares, perspectivas, umas brilhantes, outras iridiscentes, outras
sombrias, mas sempre perspectivas (REAL, 2001:119).
Fazes-me falta (2002), segundo a
escritora, foi escrito a partir da experiência de perda: “escrevi-o ao som da
música dos meus mortos, ensaiando uma aproximação mais radical à ciência da
poesia, a poesia da política e a dança da filosofia.” Sob o eco de fazes-me
falta... fazes-me falta, duas vozes alternam seus relatos, ora uma mulher que
acabara de morrer, ora um homem na constatação de seu desespero. Com fontes
tipográficas diferentes, os cinqüenta capítulos do romance, duplicados, simulam
o espelho onde o “diálogo” ocorre.
O que se poderia supor como uma relação
passional, descortina-se surpreendentemente como “um processo mais complexo e
desconcertante em que estamos para além da amizade e do amor, num espaço de
infinita sexualização, pela pura e também impura ausência de corpos, numa espécie
de invenção impossível (...)” (COELHO, Público,
Mil Folhas, abril 2002). Essa encenação passa, então, a ser o pretexto para
tematizar a “diferença”, não apenas nas discussões do lugar do feminino ou
masculino, mas também das oposições entre o velho e o novo, da crença e da
descrença e, principalmente, sobre os valores de uma sociedade, representados
pelas duas personagens: “Ele vem de uma guerra em África e de alguma corrosão
de ideais. Ela parte de uma ânsia desmedida de mudar o mundo e reequilibrar a
relação entre homens e mulheres” (COELHO, Público,
Mil Folhas, abril 2002, p. 2).
ESTUDO DA OBRA
O TEMPO
Em Fazes-me Falta, no esforço de definir
esse tempo que Deleuze procurou elucidar, a narradora-morta utiliza-se de uma
imagem concreta: “Em cada cravo seco se encontra o passado e o futuro de todos os
cravos” (PEDROSA, 2003:182).
A narrativa é encenada no cruzamento de
um diálogo espectral e enunciador de muitas leituras ou possíveis
interpretações. O simulacro é sedutoramente persuasivo à medida que se tem a
ilusão de que a personagem-narradora, a mulher morta, se torna mais próxima na
ausência do que na “antiga presença”, e a personagem-viva, no despojamento de
uma inesperada solidão, se detém na falta e passa a viver das coisas realizadas
e das imaginadas, no inventário do que perdeu e do quer transformar em vivido.
O caráter original da narrativa de
Fazes-me falta poderá ser analisado sob vários aspectos da sua construção
textual: a alternância de duas vozes nos cinqüenta capítulos que compõem a
obra; o desdobramento permitido por cada uma delas, como o confronto que
sugerem; e a interseção do tempo e do espaço que as representações do feminino
e do masculino encenam através dos relatos que contrapõem vida e morte.
Cada um dos aspectos mencionados poderão
refletir o papel do tempo que permeia inquietamente o romance, seja através das
falas das personagens ou nos diferentes “tempos” (gerações) a que pertencem
estas personagens; seja no olhar especular lançado à sociedade contemporânea
portuguesa; ou seja, principalmente, sobre a “suspensão do tempo”, um mecanismo
criado pela personagem que, já morta, é anunciado do espaço em que ela passa a
existir, convocando a outra em vida para um diálogo supostamente impossível.
Partindo de uma estratégia narrativa que
utiliza fontes tipográficas diferentes para representar as
personagens-narradoras, o da mulher em fonte simples e do homem em forma
negritada, instala-se no romance o espaço para o relato de cada uma dessas
vozes, que simulam um espelho à medida que testemunham os acontecimentos
comuns, observados a partir de cada subjetividade.
A tentativa de apreensão do tempo,
através da linguagem, torna-se uma necessidade de cada um dos pontos de vista “o
tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo,
e que a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condição da
existência temporal” (RICOEUR, 1994:85). Para a mulher, a constatação do enigma
da temporalidade “Por isso te procuro com as palavras da vida, as palavras com
que tu me reconheceste e amaste. Mas que eu sei das horas que passaste a
velar-me, que sei eu do tempo, agora, que a vida se desenrola diante de mim
como um filme longínquo?” (PEDROSA, 2003:23), para o homem, a angústia de não
poder deter mais o tempo que sempre soube não dominar “a morte espreita sobre
todos os prazeres dessa cronologia a que nos agarramos para escapar ao tempo. O
que somos para além do que vamos sendo? O meu além eras tu — íman da minha
íntima, impessoal temporalidade” (p. 13).
Esta inserção do sujeito “como ser de
linguagem” na construção da temporalidade foi defendida por Bachelard como uma
tentativa de se organizar perante a “desordem e o caos que a vida o submete”.
Para o autor, o tempo não se reduziria apenas à dimensão anterior e exterior ao
sujeito, mas à maneira como ele se inscreve e dinamiza esta dimensão.
A consciência deste tempo que escapa
como as areias de uma ampulheta, observada pelo narrador-vivo -“Se ao menos eu
tivesse escrito cada um dos nossos dias, anotado a seqüência das nossas
conversas, agarrado o Tempo que nos foi roubado” (p. 103) - vai ficando mais
clara à medida que ele quer dar continuidade ao tempo que ficou para trás e só
a linguagem poderia novamente redimensionar, como referiu Bachelard.
“O tempo enquanto experimentado mostra a
qualidade da relatividade subjetiva, ou é caracterizado por uma espécie de
irregularidade, não-uniformidade e distribuição desigual na medida pessoal do
tempo” (MEYERHOFF, 1976:13). Esta “falsa flexibilidade” traz a ilusão de que
podemos conduzir o tempo. Todos os instrumentos da ciência para mensurar o
tempo existem como uma necessidade de dar objetividade, criar um padrão de
referência e reconduzir-nos a esta “realidade” também relativa, considerando,
segundo Nobert Elias, em sua obra Sobre o tempo, que:
A
idéia de que os homens sempre teriam apreendido as séries de acontecimentos sob
a forma que predomina nas sociedades contemporâneas — a das seqüências
temporais integradas num fluxo regular, uniforme contínuo — é contradita por
toda sorte de fatos observáveis, tanto no passado quanto no presente. As
correções trazidas por Einstein para o conceito newtoniano de tempo ilustram
essa mutabilidade da idéia de tempo na era moderna (ELIAS, 1988:35).
Para o mesmo autor, a história da
evolução das sociedades humanas testemunha as diferentes vivências e
transformações sobre o conceito do tempo. Isto também pode nos levar à
conclusão de que os diversos estudiosos do tempo, sejam eles cientistas ou
filósofos, questionaram essa “relatividade”, “medida” e “domínio”, expressos
pelo narrador-vivo: “— por que vivemos como se o tempo nos pertencesse
infinitamente, como se pudéssemos repetir tudo de novo, como se pudéssemos
alguma coisa?” (PEDROSA, 2003:31), ou nas palavras sentidas da narradora-morta
“— as Curvas do Tempo esgotaram-se no minuto em que gerei essa criança fora do
sítio” (p. 225).
Curvar-se à tirania do tempo ou
sentir-se soberano sobre ele é a condição paradoxal que a voz masculina
encontra para enfrentá-lo: “(...) só contornando a monstruosa perfeição do
tempo se podia vencê-lo. Assim pensava, enganei-me porque o tempo não é
pensável” (p. 90). É preciso sentir-se como o próprio tempo para compreendê-lo
e esquecer a dor da ausência, da perda e das feridas da memória: “Eu sou o
tempo; sou nada, o nada veloz e imóvel que molda o corpo do tempo. Deixar de
ser é ainda acatar as regras implacáveis de ser” (p. 90).
Estas sondagens recaem, deste modo, na relatividade
já mencionada, confirmada pelas palavras de Virgínia Woolf:
A mente
do homem atua estranhamente sobre o corpo do tempo. Uma vez que se aloje no
singular elemento do espírito humano, uma hora pode ser esticada cinqüenta ou
cem vezes sua duração no relógio; por outro lado, uma hora pode ser
precisamente representada por um segundo através do relógio da mente
(MEYERHOFF, 1976:13-14).
O conflito com o tempo parte também
dessa “relatividade”, porque aparentemente apenas o presente parece “apreender”
a experiência momentânea do tempo. Tem-se a impressão de um domínio sobre o
fluir do tempo, muitas das vezes movido pela necessidade de manutenção do que
se perdeu e que se teme esquecer, como sente a personagem-masculina no
sentimento de desamparo e de revolta pela ditadura do que lhe é impingido:
Tive
medo de ir esquecendo, nos primeiros dias, mas não é verdade o que as pessoas
dizem sobre o tempo. Deus pode tirar-nos a vida — sim, esse gajo tem uma cara
boa para culpado — mas não percebe nada de pormenores. Lixar o tempo é questão
de acerto nos pormenores (PEDROSA, 2003:185).
Essa atitude dá-lhe a sensação de que
também ele é “senhor do tempo”, que naquele presente é possível reverter uma
situação e continua: “Invento-te pura criação minha, a mais real das amigas
imaginárias. Sacudo-te do tempo, faço-te minha amiga antes e depois da
cronologia que te marcaram” (PEDROSA, 2003:185).
O presente, dentro da concepção linear
do tempo, converge para uma certa ordem do “antes” e “depois”, divisão temporal
que foi analisada por Agostinho, no livro XI das Confissões: “não há um tempo
futuro, um tempo passado e um tempo presente, mas um tríplice presente, um
presente das coisas futuras, um presente das coisas passadas e um presente das
coisas presentes” (RICOEUR, 1994:96). Para Ricoeur, sobre esta estrutura
temporal incide a ação, questionamento esse que se pode fazer a esse tríplice
presente:
Presente do futuro? Doravante, isto é, a partir de
agora, comprometo-me a fazer isto amanhã. Presente do passado? Tenho agora a
intenção de fazer isto, porque acabei de pensar que (...)
Presente do presente? Agora faço isto, porque agora posso fazê-lo: o presente
efetivo do fazer atesta o presente potencial da capacidade de fazer e constitui-se
como presente do presente (RICOEUR, 1994:96).
O presente torna-se uma espécie de
plataforma, “por isso meu presente parece ser algo absolutamente determinado, e
que incide sobre meu passado” (BERGSON, 1999:162). Este mecanismo pode ser
percebido em Fazes-me Falta, principalmente na personagem-viva que pretende
“esticar” suas lembranças no presente doloroso em que se encontra: diante do
caixão da amiga que se foi, na consciência do vazio inesperado “Estou sozinho.
Sozinho com o coração em bocados espalhados pelas tuas imagens” (...), “Dava-me
agora um jeito um deus qualquer para moço de recados. Um deus que te afagasse
os cabelos e me recordasse como eram macios” (PEDROSA, 2003:11). A certeza de
que em um instante tudo muda, da vida para morte, rouba dele a esperança
reversível do tempo. “Quando as coisas deixam de durar, alteram-se. O simples
fato de deixarem de ser altera-as, por mais que procuremos fazê-las estancar”
(p. 42), por isso o presente é o aliado, a aparente continuidade do que ficou,
da ilusão de que se poderia alterar os acontecimentos “Meu presente portanto é
sensação e movimento ao mesmo tempo; e, já que meu presente forma um todo
indiviso, esse movimento de estar ligado a essa sensação, deve prolongá-lo em
ação” (BERGSON, 1999:161).
A experiência com o tempo no presente
não é mais acessível para a outra personagem, a narradora-morta, tendo já
experimentado a dor da perda dos pais — “os meus pais despenharam-se sem mim
numa curva de estrada, tinha eu catorze anos e quis perder a Fé em Deus”, sabe
que “A dor precisa de um corpo. Limite de pele, unhas, ranho, suor. A
incapacidade de sair, a coragem irremediável de viver o tempo” (PEDROSA,
2003:71). Para o enfrentamento dessa nova dor, ela cria um outro espaço que lhe
permite relatar sua morte, suas rememorações e suas impressões. O “quase
impossível” diálogo convocado por ela é sugerido através deste pacto ficcional,
onde os enunciados trocados pelos locutores e, conseqüentemente, alocutários,
também dirigem-se a um terceiro alocutário: o leitor implícito, testemunha das
enunciações encenadas por estas personagens, que, através de falas alternadas,
conseguem dar a impressão de uma aparente comunicação. Assim, nesta antítese
temporal: vida/morte, cada narrador fala de um lugar, determinando também um
tempo específico para cada narrativa.
O presente que consola o narrador-vivo
não pode fazer o mesmo pela narradora-morta: ela encontra-se fora do tempo
marcado e o espaço narrativo que é criado surge de um atalho no labirinto do
tempo, diferença narrativa instigante, que permite a relatividade deste tempo
como uma “suspensão” quase verossímil. A voz feminina encontra, neste espaço, a
condição de narrar em um tempo inteiramente subjetivo, gerado pelo seu novo
estado “Os meus olhos que já não o são vêem agora tudo o que foi, tudo o que
poderia ser, tudo o que é. Concentro-me no que é — estou morta (...)” (p .23),
partindo como diz “(...) aqui deste espaço sem espaço” em busca de um lugar
especial, passível de um novo olhar, protegido dos efeitos da temporalidade que
consome a vida: “Neste lugar sem lugar, passado e presente e futuro são contemporâneos”
(PEDROSA, 2003:23).
O entendimento deste dispositivo criado
pela narradora-morta poderá ser compreendido a partir do conceito de espaço,
segundo o Dicionário de Narratologia:
...a
integração do tempo no espaço define-se como cronótropo: “No cronótropo
literário tem lugar a fusão dos conotados espaciais e temporais num todo dotado
de sentido e concretude. O tempo que se faz denso e compacto torna-se
artisticamente visível: o espaço intensifica-se e insinua-se no movimento do tempo,
do entrecho, da história” (REIS, 2000:139).
Este espaço é, então, nomeado pela
narradora-morta como “noante”: “Nesta primeira prega da transcendência, neste
noante à margem do tempo e da minha eternidade, o meu olhar sem órbitas move-se
por ampliações máximas de pormenores mínimos” (PEDROSA, 2003:16) e ao longo da
narrativa vai se repetindo, situando-a acima do mundo que deixou: “Flutuo por
este noante em busca dessas palavras a menos, atravessadas entre nós como um
longo corredor de prisão (p. 27) e definindo a suspensão pretendida: “Mas o que
é o passado? Só para os vivos os mortos têm passado — o pior da morte é este
presente obrigatório, este noante suspenso” (p. 37).
Entrevistada sobre a razão da escolha da
palavra “noante”, inventada por ela, a autora justifica-se assim: “Simplesmente
porque ‘limbo’, que seria seu sinónimo, me pareceu uma palavra demasiado carregada
de culpas e tristeza (...). Noante pareceu-me uma palavra redonda e macia para
definir esse sítio onde a protagonista de Fazes-me Falta não havia estado antes
(...)” (ciberduvidas.sapo.pt/php/resposta.php?id).
Em outros trechos da narrativa, a
narradora-morta utiliza-se da expressão limbo. Essa diferença de tratamento ao
mesmo espaço parece insinuar uma conotação mais forte para aquele momento
descritivo, traduzindo um sentimento confuso e carregado de crenças que são
questionadas ao longo das rememorações.
O
estado em que me encontro é muito mais angustiante: como se vivesse em
sonolência diante de um filme que já não posso recriar, vendo tudo, o passado e
o futuro, que afinal são um só ser hermafrodita, e aprendendo demasiado tarde o
que não fui capaz de ver. Deve ser isto o limbo (PEDROSA, 2003:38).
O noante ou limbo, lugares deslocados no
tempo, ausentes dos movimentos que o tempo faz ou prováveis pinçamentos do
instante temporal? A transitoriedade poderia ser assim “congelada” no percurso
do tempo? O conceito de “entretempo” de Franklin Leopoldo e Silva poderia
aproximar-se destas indagações e justificaria o nascimento da obra literária “(...)
o Tempo por meio da presença do instante intemporal, aquele que não é nem
passado nem presente, mas que se situa num entretempo a partir do qual a obra ganhará o caráter de
eternidade” (SILVA, 1996:151). Portanto, a eternidade deste instante, deste
espaço narrativo da voz feminina no tempo é instrumento para criação. Pela
percepção do entretempo, as palavras são
mediadas e revelam a essência temporal que determina aquela transitoriedade.
É no noante que a protagonista de
Fazes-me Falta sente-se consciente da paixão que lhe provocou a morte e que em
vida não resistia. “Nestas águas-furtadas que não conhecestes morava um homem e
no corpo dele era a minha morada. Mas eu não sabia. E neste noante já nada
posso contra essa ignorância, não tenho como honrar o contrato carnal de
habitação que estabelecêramos, às cegas” (PEDROSA, 2003:68). É também lá que o
tempo transfigura-se de saudade para evocar o amigo que ficou em vida: “Faz-me
falta a música para dançar ao teu lado neste noante em que vago” (p. 171).
O “noante” é o espaço que abriga a
protagonista, funcionando como “observatório”, entrincheirado no tempo em que
ela quer “congelar”, local que se pretende seguro para as observações sobre si
mesma e sobre o protagonista, que se encontra à mercê do tempo, “condenado” às
leis que regem a vida.
Este mecanismo evidencia-se como lugar
da narrativa da personagem, sugerido pela suspensão que lhe confere uma
amplitude sobre os acontecimentos e, conseqüentemente, compensando o sacrifício
de morrer para ser “eterna”, ao contrário do amigo que fica subjugado pelo
inventário do vivido, preso no presente e ausente de um futuro que só depois
tem consciência do que almejava.
Assim, “O tempo é o veículo da narração
como é também o veículo da vida” (MEYERHOFF, 1976:25) e as experiências
individuais com o tempo e no tempo diferenciam os seres humanos e constroem
histórias que dão significado ao próprio tempo.
Os narradores de Fazes-me Falta incorporam
tempos diferentes que se encontram no tempo comum. As experiências e as
subjetividades de cada geração são espelhos que definem identidades e têm
representações históricas e literárias. A amizade é a ponte entre dois mundos
que se descortinam através do registro do tempo, um tempo que “faz-se em ritmo
binário. Como um longo poema em ponto e contraponto, a narrativa é salpicada
pelo tempo do refrão — Fazes-me Falta — que percorre o relato masculino (...)”
(OLIVEIRA, 2005:6), eco doloroso da ausência irremediável que parece responder
ao relato feminino, que reveza desespero, angústia e muitos outros sentimentos,
até a vontade de consolar o amigo que ficou: “Não me chores, meu querido: o
melhor de mim vive ainda em ti, sempre viverá nesse saber da fractura que me
faltou, nessa coragem da incompletude que só deste noante consigo finalmente
ver” (PEDROSA, 2003:27-28).
A narradora-morta é a amiga “roída pela
própria posteridade”, uma rapariga de 37 anos que corria “em contra-relógio”,
que procurava “a imobilidade de um tempo-pedra”. Professora universitária e
depois deputada. Para o amigo, a mudança não lhe causara bem: “Entraste para um
mundo especializado onde mentir era diferente de omitir” (PEDROSA, 2003:18),
distante da época em que estudava História e vivia procurando a verdade além
dos fatos. Segundo o amigo, “Repetiam-te que a verdade não existia — porque
essa era a verdade do pedaço de tempo que nos era dado viver. Mas tu não te
instalavas no teu tempo. E preocupavas-te continuamente em não te instalares
num outro tempo que te tornasse anacrónica” (p. 19).
À nova profissão entrega-se com
sofreguidão, na crença de que é possível “salvar o mundo” (p. 170). Esta
passagem traz muitas mudanças, aprendizados que lhe desfiguraram a alma: “(...)
adquiri habilidades negociais esconsas de que me orgulhava. Aprendia, o que era
outra forma de ensinar” (p. 112). Na ansiedade do agir, relaciona-se com um
novo tempo, que confessa ao amigo do “noante” onde está: “Um novo exercício de
paixão — os dias passavam sem que desse por eles; o tempo, que na História se
me afigurava muitas vezes preguiçoso — embora nunca circular, como tu
pretendias — surgia-me agora despedaçado, um puzzle que poderíamos refazer com as nossas pequenas
mãos” (p. 112).
A política desnudou-lhe o mundo das
intrigas, das invejas, das amigas oportunistas, da burocracia que corrói os
ideais. “A minha passagem do ensino para política foi ainda e sempre uma
insubordinação teórica — e eu pensava que estava a fugir da teoria para a arte
maior da vida” (p. 28), constata no desalento da eternidade em que se encontra,
do lugar em que não pode mais lutar pelas crianças desamparadas, defender as
mulheres que sofrem injustamente, combater a violência. Por isso, sente o peso
do mundo, deseja poder voltar: “Pudesse eu por um segundo tocar o rosto de uma
criança para o estancar, para voltar a ter a ilusão de que é possível
estancá-lo, fechar as portas da dor, da tortura, da injustiça” (p. 183).
A narradora-morta não se sentia em
sintonia com o seu tempo, com a máscara da juventude: “Nunca soube o que eram
‘jovens’, nunca soube o que era ‘o meu tempo’” (PEDROSA, 2003:53). Situar-se no
tempo que obedece às convenções não foi possível, considerando que “O tempo —
ou qualquer outra categoria existencialista — só é significativo dentro do
mesmo contexto de experiência pessoal, não dentro do contexto da natureza”
(MEYERHOFF, 1976:25), o fluxo temporal tem uma aparente continuidade que parece
correlacionar-se com as experiências do eu, atribuindo-lhe um valor
“qualitativo” que nem sempre coincide com o “quantitativo”.
Parecia existir, para ela, uma pressa
que escorria para o túnel do tempo, uma ânsia de viver intensamente, seja na
paixão que a consumiu, gerando-lhe um filho, em uma gravidez ectópica — “Morri
com um sem-abrigo perdido no caminho para o meu útero, morri porque o meu corpo
decidiu gerar uma vida nova e se enganou” (PEDROSA, 2003:15) — seja nas causas
por que lutou: “morria aceleradamente, lenha gananciosa, nessa ânsia de aquecer
o mundo mais depressa do que todos os fogos” (p. 151). Mas o tempo tem suas
próprias leis sobre o destino “— as Curvas do Tempo esgotaram-se no minuto em
que gerei essa criança fora do sítio” (p. 225), que se
sente, depois, liberta dos grilhões do tempo, assim como das palavras de
seu relato “já não preciso de contar histórias. Deixo cair todos os efeitos
lustrosos e atinjo o coração do amor, essa tinta espessa que flutua sobre o
tempo e transfigura tudo aquilo em que toca” (p. 233).
O
narrador-protagonista fala do lugar da vida, paradoxo irônico para aquele
“quase velho” que se depara com a morte inesperada da amiga: “como é que eu
mato a tua morte?” (p. 17). Diante do impossível, também quer alcançar a
eternidade junto àquela que foi capaz de morrer: “E se tu morreste, também eu
serei capaz de morrer, sem que as ondas nem o céu nem o silêncio se
transformem. Cair em ti, cada vez mais longe da mísera ficção de mim” (PEDROSA,
2003:14), inconformado com a perda, que considerava sem sentido: “creio que nunca te vi doente — a não ser de
amor. Cultivavas o vício da paixão por um método implacável” (p.13).
O narrador-vivo, no sobressalto de uma
repentina solidão, ancora-se então no presente, do qual perspectivas temporais
se mesclam para aliviar a dor da perda: o tempo mais próximo são as reflexões
sobre a morte perante o caixão da amiga, os acontecimentos em torno do funeral.
Os demais tempos são alternados pelas lembranças da história que partilharam e
o “antes”, impregnado pelas vivências de uma guerra na África, dois divórcios e
os desencantos da infância que são prolongados na convivência difícil com a mãe
e irmãos.
Seu relato é uma tentativa de encontrar
o tempo perdido, como se fosse possível, através das palavras, resgatá-lo neste
presente desolador. Entrevistado, no funeral da amiga, sobre a amizade comum e
o momento difícil que vivia, responde que “É por isso mesmo que não falo dela.
Continuarei apenas a falar com ela” (PEDROSA, 2003:121). Em outro momento,
recorda-se da leitura interrompida pelas frases que deslumbravam a amiga e a
irritação que ele disfarçava com sorrisos: “Mas depois, quando já te tinhas ido
embora, no tempo em que era possível que te fosses embora, eu lembrava-me das
tuas leituras bruscas (...)” (p. 47).
Quando a conheceu, sentia-se
“esvaziado”, sentia a necessidade de “experimentar de novo a arrogância aflita
da juventude” (p. 25), inscrever-se no curso de História para preencher este
vazio: “Precisava do sangue da batalha infinita. Fazia-lhe falta o sangue das
ideias dos outros, o sangue da História do Futuro que escorre nas salas das
universidades, nas margens intranqüilas dos livros” (p. 25). Encontra assim, na
professora e, posteriormente amiga, o pretexto para voltar à luta. Para ela,
“toda a História da civilização fora construída sobre o objectivo sistemático
da exclusão das mulheres” (p. 25), isto o incita à provocação: “(...) comentei
que a cadeira deveria intitular-se História das Musas, em vez de História das
Mentalidades” (PEDROSA, 2003:26) e torna-se o mote para um jogo de idéias que
lhe devolve a “cor” que já não tinha desde os “alvores da revolução”.
O tempo que queria tomar como seu só
existia no limite que as palavras impunham: a amiga não permitia que ele
entrasse “na incauta claustrofobia desse palácio de espelhos deformantes” (p. 233)
e os amigos achavam sua amizade um “devaneio de velho, uma extravagância
inconveniente. Uma afronta minha à demasiada idade que nos unia” (p. 65) ficava
difícil entender que a ousadia dela era o alimento que buscava para atravessar
o tempo e aproximar esta diferença sobre a qual ele tem dúvida: “Talvez não
haja idades, só mortos ressoando pelos canais do Tempo, mortos que, como ímãs,
aproximam e afastam os que ainda não morreram” (p. 65).
Esta imagem que inquieta a voz masculina
pode aproximar-se da configuração do tempo definida por Kant, segundo Deleuze.
Tudo o que se move e muda está no tempo, mas o
tempo, ele mesmo, não muda, não se move, e muito menos é eterno. Ele é a forma
de tudo o que muda e se move, mas é uma forma imutável e imóvel. Não é uma
forma eterna, mas justamente a forma do que não é eterno, a forma imutável da
mudança e do movimento (DELEUZE, apud GUIMARÃES, 1997:41).
Considerando as mudanças como
referências marcantes dentro do tempo, o sentido ou significação dos
acontecimentos é sempre uma marca subjetiva, independente de uma aparente
cronologia. Assim sendo, os fatos ou detalhes que pareciam não ter importância,
são ressignificados para este narrador-vivo no desalento que a morte e a
mudança provocaram.
Era necessário, por isso, falar do que
foi possível em vida: que havia escondido que dava aulas de História para
“criminosos amadores (porque se fossem profissionais não estavam atrás das
grades)” (PEDROSA, 2003:65); das amigas pouco fiéis que ela não percebia
“Enganavas-te tanto sobre as pessoas” (p. 128); da África “não te contava as
histórias da guerra em África que tu querias ouvir. Tinha–as atirado para um
caixão de silêncio e enterrado longe da minha vida, muito antes de renascer ao
teu lado” (PEDROSA, 2003:62); que a tese que ela “copiou” dos trabalhos dele é
razão de gratidão para ele: “se por uma vez pude melhorar a orquestração da tua
melodia, quem tem de ficar grato sou eu” (p. 162). A enumeração destes fatos e
outros da narrativa parecem traduzir o desejo de confissão, como prova maior da
amizade que, despojada da “vida”, continuaria na eternidade.
Fonte:
http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECAP-798GT4/fazes_me_falta__de_in_s_pedros___uma_alegoria_contempor_nea_da_saudade.pdf?sequence=1
Acesso em: 06 de setembro de 2013.