Um livro a duas vozes
RESENHA
A escritora portuguesa Inês
Pedrosa, em 'Fazes-me falta' revela os delicados mistérios de uma amizade
erótica
A escritora portuguesa Inês Pedrosa, em 'Fazes-me falta' revela os delicados mistérios de uma amizade erótica
De onde viemos e para onde vamos é uma questão que
ninguém sabe ao certo responder. Mas o que fazemos com a vida durante nossa
passagem pela Terra, Inês Pedrosa responde com primazia em Fazes-me falta,
terceiro romance da escritora portuguesa que arrebatou o público de sua terra
natal vendendo 60 mil cópias desde seu lançamento. O romance, em sua 10ª edição
em Portugal e 1ª no Brasil, trata sobre a amizade erótica entre uma professora
que se envereda pela arte política e um escritor bem mais velho.
Até aí, o leitor poderia dizer que se trata de um
romance meio água-com-açúcar bem estruturado. Grande engano. Uma das surpresas
da obra, que foge do convencional drama de folhetim, é apresentar um livro a
duas vozes, confissões de um diário, páginas de um amor travestido de amizade e
nunca concretizado. Detalhe: um dos narradores, a mulher, está morta. É neste
ponto que Inês escapa do comum e presenteia o leitor com uma história delicada,
sutil e recheada de ensinamentos que não são restritos aos dilemas amorosos.
Os relatos do escritor e da ativista política morta
são colocados lado a lado de forma a estabelecer um compasso entre as palavras
e confidências dos dois. A cada página é possível montar o quebra-cabeça sobre
a morte da personagem e o mistério dos sentimentos que permeiam o amor sem
sexo: o afeto. Além da relação amorosa, estabelece-se uma ferrenha crítica, sob
a voz do escritor-narrador, sobre o poder transformador da política, para bem
ou para o mal, na personalidade e no íntimo das pessoas. O livro perpassa por
traições, interesses, escolhas, religiosidade, arrependimentos e acertos para,
mais tarde, como se a narrativa caminhasse na roda da fortuna, recair no amor.
Esse é o fato inusitado em Fazes-me falta: tudo tem como pano de fundo o
amor, independente da máscara que vista, seja o amor-afeto, amor-amigo ou
amor-erótico, num eterno rolar da pedra de Sísifo.
Na intimidade do diário é possível flutuar de um
mundo ao outro, conhecer alguns segredos sobre a morte e, principalmente, tirar
um grande aprendizado: o que fazer da vida quando uma parte de nós deixa de
viver? “Quando morre alguém uma parte de nós é obrigada a morrer e renascer”.
Foi nesse renascimento que a autora colheu inspiração para criar Fazes-me
falta, todo escrito à mão. Após a morte de seu pai, vítima de um aneurisma,
Inês começou a pensar na morte e na eternidade. Como nem Kant com sua “estética
transcendental” conseguia responder às suas indagações, a autora portuguesa
pôs-se a escrever sobre questões “nas quais nunca havia pensado”. “Fui
católica, mas perdi a paciência com a Igreja Católica. Nunca mais tinha
enfocado a questão de Deus. Esta mulher (personagem do livro) que surgiu de não
sei onde tem muito de mim”, declarou Inês quando esteve no Brasil, durante a
Bienal do Livro, no Rio, para a divulgação do livro. Destino ou não, o
renascimento de Inês se transformou num best-seller em Portugal e unânime em
elogios por aqui.
Fazes-me falta que chega ao leitor brasileiro sem adaptações
lingüísticas, do jeitinho que Inês escreveu é um bom remédio, sem necessidade
de receita médica, de afabilidade para o caos moderno de uma geração carente de
sentimentos. Como se lê na contracapa do diário: “Não importa o que se ama.
Importa a matéria desse amor. As sucessivas camadas de vida que se atiram para
dentro desse amor. As palavras são só um princípio – nem sequer o princípio.
Porque no amor os princípios, os meios, os fins são apenas fragmentos de uma
história que continua para lá dela, antes e depois do sangue breve de uma vida.
Tudo serve a essa obsessão de verdade a que chamamos amor. O sujo, a luz, o
áspero, o macio, a falha, a persistência”.
"Uma das surpresas da obra, que foge do convencional drama de
folhetim, é apresentar um livro a duas vozes".